Quem me deve alface, não me paga couve.

Quatro e quinze da manhã. E uma neblina pesada castigando os corpos quentes de uma jovem de vinte e três anos, e um senhor de sessenta e três. Éramos meu pai, e eu a caminho do ponto de ônibus.
Um horário não habitual para mim, que quando necessário a algum compromisso me acordo às cinco horas, mas morando num sítio de uma região pouco isolada temos que convir com estes "não tem escolhas" da vida. 
Ia eu ao Rio de Janeiro, do outro lado da cidade pra reaver uns documentos e outras burocráticas brasilidades cidadãnescas. A fila para aquele ônibus das quatro e pouca da matina, imensa!
Trabalhadores e trabalhadoras que iniciam seu desfile na corda bamba exatamente às três da madrugada de cada dia, para que sigam com seus malabares diários em busca de uns R$ 970, 00 temeritos, quando não menos. O salário - expressão que surgiu em Roma, lá pelas tantas a.C; e que tinha relação com a troca de sacos de sal, a moeda da época - que de salgado nada tem.
Vai o trabalhador com sono, fatigado da rotina massacrante, estressado com o ir e vir de atravessar uma cidade em guerra constante, para aquela fila. Calados, mas nem por isso tristonhos. Eu, que me sentia uma intrusa à rotina daqueles trabalhadores estava na fila também e meio confusa com o ambiente. 
Passa uma moto que mais parecia uma motosserra barulhenta de um lado ao outro e, nós na alarmada condição de medo costumeira, observávamos aquela estranha situação. Um pouco mais findadas as gracinhas do motoqueiro da madrugada, ele retorna agora com dois carros repletos de bêbados, escandalosos e com o funk nas alturas!
Ah minha gente, pera lá! É muita falta de educação e noção por metro quadrado! Eu que já venho pegando um "ranço" do homenzinho carioca há algum tempo, naquela hora fui tomada de uma revolta tamanha. E como se não bastasse a falta de respeito com as casas ao redor, onde a maioria de moradores são idosos e com os trabalhadores sonolentos da fila, o carro parou em frente a nós, o motorista me encara e começa a gritar cantando bêbado pra nós: "Sarra novinha com a bunda no chão". 
Eu queria sarrar um tijolo de concreto na cabeça dele. 
E alguma coisa ia ao chão sim, mas não seriam os glúteos maiores e menores de nenhuma novinha.
Aquela patota ficou ali em volta da fila fazendo suas algazarras. Meu pai preocupado comigo ficou ali até eu entrar no ônibus e pedi para que ele fosse embora logo, pois eu estava preocupada se fizessem algo a ele no retorno para casa. 
Dentro do coletivo, as pessoas revoltadas reclamavam da falta de respeito daquela juventude. Ouvi a tudo calada. Reclamações desde "ninguém lá em casa dormiu pois eles fizeram isso a noite inteira desde meia-noite", "se chamar a polícia, os errados somos nós", "tem é que dar uma surra neles".
Notei que a violência ia crescendo, comentário após comentário.
Ao meu lado, uma senhora que dizia: "Meu nome é Fulana de Tal, hoje eles vão ver só o que vai acontecer, vai ter festa de novo né? E eu sei onde!"
A dona "Fulana de Tal" conversava revoltada com a senhora do outro lado da poltrona. E até me pediu desculpas por sua atitude de desabafo. Eu assenti, como alguém que entende o quão uma noite mal dormida é exaustiva. 
Uma frase da dona Fulana, me despertou a um pensamento: "Deixa eles, quem me deve alface não me paga couve". E ali eu notei, que esta violência balbúrdia que a gente vive é efeito da vitimização constante. 
Ainda no trajeto do ônibus eu não consegui dormir, pois dias antes foram incendiados três ônibus naquele percurso. 
E como dormir na viagem ao trabalho se você não sabe se volta para casa? 
E como dormir se você não sabe se no pequeno caminho de retorno à casa, seu pai conseguiu chegar?
Como dormir ao se deparar com uma classe operária que não tem ao menos direito ao sono? 
Como dormir ao despertar-se que a violência vem sendo alimentada não por maldade, mas pelo grito de clamor como uma única reação de quem não sabe mais como se defender? 

"Quem me deve alface, não me paga couve". 

E assim vai seguindo-se o dia a dia do trabalhador que  entre tiroteios, impostos, desrespeito, dívidas, desemprego, cansaço e tudo mais... Se lhe derem uma foice, ele sai colhendo os alfaces até de quem não lhe deve!



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